Sunday 29 November 2009

Regência


Cornell Capa, [Igor Stravinsky, Venice], 1951

Conduzir
E deixar ser conduzido
Dirigir
E deixar ser dirigido

Consumir
E deixar ser consumido
Digerir
E deixar ser digerido

Compor
E deixar ser composto
Interpretar
E deixar ser interpretado

Reger
E deixar ser regido
Pelos astros,
Pela batuta ou
Pelo compasso

É uma arte
Seja de composição
De interpretação
Ou simples expressão

E para ler a pauta da vida
Crescendo
Diminuendo
Staccato
Marcato ou
Legato

Não basta ser virtuose
Pois para preencher o vazio
Entre a partitura e a orquestra
Além da esquerda que voa livre sem pio
A batuta há de também aterrissar-se pela destra

Ultimamente
Exige maestria
Ao unir-se a esta massa orquestral
Sem perder o tempo
A articulação
A humildade
E a própria música

Guilherme Ferreira

Saturday 28 November 2009

Escutar


Édouard Boubat - Rémi holding a shell,
Paris, France, 1955

O som que vem de fora
Ora vezes dentro reverbera
Quando ouvidos bem abertos
Portam-se em compasso de espera

O som que vem de dentro
Ressoa para fora
Quando a boca não deplora
Os contíguos sentimentos

A palavra
O tom
A melodia
O som

Escutar
Ouvir
Silenciar
Uma concha a parir

Casco côncavo e calcário
Que sem pronunciar alarido
Dá luz ao silêncio e seu leve sonido
Calando a Vênus parideira
E o sofrimento do calvário

Estes decibéis sutis
Clamam uma privação
Do falatório
Da gritaria
Do barulho
Do ruído

Ensurdecedora
A dissonância desta cacofonia
Falsa ressonância
Ecoa desarmonia

Mas nas pregas
Da nossa própria abóboda
Encontra-se uma nova acústica
Dos nossos próprios sentimentos

A imaginação viaja em ondas então
Quase silenciosa escuta-se a sinfonia
Que bate e rebate nesta audição
Da melodia de si mesmo

Guilherme Ferreira

Sunday 22 November 2009

Segunda-feira



Já tem fama de ser a segunda
Pois a primeira não se ouviu falar
A terça a acompanha
Para não deixá-la solitária
Até o fim de semana

Antes dela o domingo à noite
Que utilidade não tem
Pois pior que ela própria
Só imaginar que daqui a pouco ela vem

Seja chuvosa
Costumeiramente
Ou até ensolarada
Raramente
Ela não tem jeito
Nasceu bastarda
Pelo menos no português
No galego, no tétum
E mirandês

Como chuva de verão
Deixe ela passar
Já estou aprendendo
Esta é uma solução

A água cai
A enxurrada varre
As nuvens fogem
O sol pede passagem

Novo ciclo da vida se inicia
Não reclamo mais
Nem dou bobeira
Aconteça
Inevitável
Segunda-feira

Guilherme Ferreira

Sunday 8 November 2009

Segurança


Lego recreation of Henri Cartier-Bresson's 1938 photograph
"By the Marne River" in Lego by Mike Balakov

Migalhas como provento
Pálidas e anoréxicas honrarias
De efêmero sucesso
Cárcere com portas pseudo-abertas
Com fiança como insaciável desalento

Qualquer semelhança não é mera coincidência
Ora, delito de difícil auto-absolvição
Grilhão mental que é
Tortura o sujeito
Sem deixar evidência

Pergunta-se o porquê de tanta abastança
E da escravidão, a sua verosimilhança
Tanta honraria esvaziada
Transforma-se em penitenciária
Fechada a chaves por sua própria ganância

Pergunta-se o porquê da penitência
E para quê tanta intemperança
Afinal este conforto não se justifica
Nem deixar a própria vida como garantia
A alma penhorada
E o corpo como cheque caução

Pergunta-se o porquê de tanta certeza
E para quê tanta auto-confiança
Afinal tudo isso sem legítima esperança
Trata-se de afirmação convicta mas sem juízo
Sentença sem sujeito
Salto no vazio sem precaução

Pergunta-se se trata-se de aventurança
Ou investida messiânica de qualquer natureza
Se olhares os honorários
E o verdadeiro intento e desejo
Concluirás que não se trata de um santo vigário
Mas um falso profeta
Oco e perdido em sua própria procissão

Pergunta-se o porquê de tanta poupança
Tanta bonança acumulada às traças
Consumida em interminável comilança
Com bebida que não sacia a sede
Nem alimento que sustenta o esqueleto
Esta equação é cheia de contraditórias incógnitas
Longe de uma firme e incontestável resolução

Coloca-se tudo na balança
Em busca de estabilidade
Equilíbrio
Infalibilidade

Busca-se absolvição
De tal regime destemido
Fugindo deste cubículo
Cela que macela e incha ego
Como carcereira de profissão

Acha-se a saída
Perguntando-se a criança embutida
Que com sua simplicidade e temperança
Retruca sem hesitação:
Só tropeça quem dança
Só se caminha sem equilíbrio

A tão almejada segureza
É sob risco conquistada
É nadada na contra-corrente
Não é livre de perigos
Nem afastada de danos de todo mal

Governança na incerteza
Mudança sem caminhão
Perseverança ilesa
Coragem sem afoiteza

Neurose sem separação
Reação sem vingança
Amar em vizinhança
Sem temer que tudo seja em vão

Arrependimento sem medicança
Andança com animação
Dança com contradança
Êxito sem cobrança

Assim não se pode comprá-la
Tampouco emprestá-la
Vendê-la
Leiloá-la

Pois a verdadeira
Não se tem
Se sente

Trança-se
Em aliança consigo mesmo
Quando se avança
Em segurança

Guilherme Ferreira

Saturday 31 October 2009

Ode à Elegia


Muro da lamentação - Jerusalém

Começa pequeno com um queixume
Assim como um pingo d'água dá inicio a enxurrada
Uma sílaba revela a palavra dura
Daí a sentença nua e crua se entremeia
Invadindo-nos como um enxame

O canto perde o encanto
A ode dá lugar a elegia
E como num passe de magia
A alegria dá lugar ao pranto

Julho passa e dá lugar a Agosto
O tempo passa rápido em busca do futuro em fuga
O sol se põe a contra-gosto
E o olhar enxerga em claro-escuro

Os joelhos então desconjuntados
Dobram e inclinam-se em lamentação
As mãos se apoiam no muro
A cabeça em direção ao chão

A lamúria emperra na garganta
Um suspiro ensaia o seu concerto
Ladainha desafinada
Que não adianta
Deplora conserto

O coração portanto emuralhado
Clama por uma saída
Busca arrimo das lágrimas
Que causaram sua erosão

O sujeito apurado em perjúrio
Dá-se conta de sua auto-traição
Aponta o dedo-duro a si mesmo
Implorando novo venturo
Derrubando a alvenaria da reclamação

Paredes do lamento caem a terra
Em pedaços de pedra
Sob a qual o homem se aduba
Planta e aterra

Surge uma petição
Em um pequeno papel
Desejo que erige nova muralha
Da confiança construída à granel

Deste muro
Que fora montureira
Renasce o homem
Flor-de-monturo
Sobrenome Ferreira

Guilherme Ferreira

Friday 23 October 2009

Alternativa


The walk to Paradise Garden, USA, 1946 - W. Eugene Smith

Em uma vida de abundância
Opção não é escassa
Vive-se na alternância
Entre uma ou outra bifurcação

Pisando em brasa-viva
Os pés salpicam de brasa em brasa
E novamente em encruzilhada
Transeunte nos pergunta como intimativa:
- Será que esquivamos da verdadeira vida?
- Ou será a vida que de nós mesmos se esquiva?

O Alter-Ego até então indiferente
Alterado, salta a frente de qualquer interferência
E responde em ofensiva:
- Nego e obscuro Ego, te nego em branco-e-nego,
poupe mais a sua saliva de falante patativa

Nego Ego, invigilante abridor de portas largas, foge
E, em campanha evasiva, investe sua última afirmativa:
- São tantas as possibilidades, especialmente as coloridas,
e de preferência aquelas viagens contemplativas e imaginativas

Pobre Nego Ego
Vivendo a vida cor-de-rosa
Dependente e cromo-adicto
Desta vida multi-colorida
Queimou o chão como água-viva
E ignorante de sua ilusão
No chão espatifou-se como uma ogiva

O pavimento incolor pintou-se como tela impressionista
Alter-Ego, tomando as rédeas da situação,
Não gritou em comemoração
Mas com voz de comando:
- Viva!

Com nova perspectiva
Ressuscitou-se uma nova estória
Uma narrativa na primeira pessoa
Não aquele Eu encarcerado pela terceira pessoa do Nego
Mas um alforriado, alterado, "altegorizado" Eu

Assim é viver
Não tomando a iniciativa
Escravizamos-nos pelo Nego
E encarcerados
A roda-vida passa
Atropelando e nos colocando a deriva

Todavia basta uma reles tentativa
A cooperativa
A inventiva
A compreensiva
Exclusiva
Derradeira
Alternativa

Guilherme Ferreira

Saturday 17 October 2009

Tempo


Boy with a clock, Comacchio, 1956 - Piergiorgio Branzi

Fardo indelével
Faz-se pesado, nos ombros de quem se descarrega
Enleva-se
Faz-se leve e sustentável
Quando nós o carregamos

Compasso intermitente
Binário, ternário ou quaternário
Da capo al fine
A vida não tem pausa
Absolutamente

O momento presente se derrete
Em passado se solidifica
E o futuro que não se repete
Faz-se aqui diferentemente

Tempo que acelera
Pelas beiradas e friamente
Come-nos com abundantes colheradas
E pedindo ritornello
Tudo recomeça
Novamente

Distintamente
Para desfrutar o tempo
Penso eu
Há de se reger a vida
Relativamente

Um segundo por vez
Allegro para caminhar
Adagio ou Largo para refletir
Presto para realizar

E assim com a batuta em mãos
Dá-se início a um viver autônomo
Saber quando dizer sim ou não
Na batida do nosso próprio metrônomo

Guilherme Ferreira

Saturday 10 October 2009

Disciplina

Michal Macku - 1963 - Bruntál

Amarra que desarma
Nó que desalinha
Amarga linha cortando lima

Quem alinha para frente rebobina
Carretel que nem bobina
Enrolado e com gingado
Mais aqui do que na China

Quem sabe o que faz
Faz o que sente
Fazendo o que não se sente
Não se sente o que faz
Sente-se tudo desnecessário
Nada faz-se necessariamente

Dilema planetário
As fileiras da atrofia engrossam
A miopia desafia
A voz que clama desafina
A ordem desalinha
A mente afina

Disciplina diferente
Não se faz em fila
Nem revolvido em linha de aço
Faz-se vencendo o segundo
Da preguiça e do cansaço

Disciplina sem camisa de força
Mas com livre escolha
É também escola
Para a verdadeira liberdade

Guilherme Ferreira

Saturday 3 October 2009

Resiliência

Ter
Poder
Não ser
Bater-se
Ouvir-se
Olhar-se
Puxar-se
Mexer-se
Fincar-se
Esticar-se
Moldar-se
Formar-se
Remexer-se
Entender-se
Reformar-se
Reconhecer-se
Guilherme Ferreira
Transformar-se
Endurecer-se
Deformar-se
Amolecer-se
Repensar-se
Assumir-se
Adaptar-se
Aceitar-se
Iniciar-se
Mudar-se
Sentir-se
Fazer-se
Crer-se
Dar-se
Saber
Amar
Ser

Sunday 27 September 2009

A bailarina


Alfred Eisenstaedt - American Ballet - 1938

Para a Ana

Vida que dá voltas
Gira e rodopia
Lá está a bailarina
Para improvisar

Vida na ponta do fio
Titubeia e desalinha
Lá está a bailarina
Para equilibrar

Vida pas de deux ou de trois
Com alguém ou sem ninguém
Lá está a bailarina
Para continuar

Vida que dá saltos
Com altos e baixos
Lá está a bailarina
Para aterrizar

Vida que baila
Quebrando o compasso
Acelerando o ritmo
Cadenciando o tempo

Sempre pronta
Lá está a bailarina
Impecável, altiva e iluminada
Dança a bela vida da dança
Vivendo a bela dança da vida

Guilherme Ferreira

Saturday 26 September 2009

Eletrizante


Glenn Gould

Aqueles que dizem que Bach é enfadonho
Opinião de que já tomei partido
Não sabem o que dizem, ainda
Pois digo-lhes em verdade:
A iluminação um dia é inevitável

Escute jazz
Escute blues
Escute MPB
Com reservas e sem preconceito
Escute axé
Até

Não há como despistar
Em uma nota aqui ou acolá
Em artefato arqueológico intacto
Encontrarás Bach

Fonte da qual todos bebem
Como que fluido universal
Bach alimenta todas as almas
Artistas ou não artistas
Músicos ou pseudomúsicos
Como eu

Com esta interpretação de Gould
Volto a ser um infante
Uma curiosidade ingênua floresce
Para colocar os dois dedos na tomada
Deixar ser tomado por este choque
Música pura e cristalina
Eletrizante

Guilherme Ferreira

Saturday 19 September 2009

Prática


Chick Corea

Devagar
E com ela vem a experiência
Sem ela,
Uma ilusão
E a demência

Uma pausa
Para respirar, para errar
Repensar
A excelência é silenciosa
Não é rebelde sem causa
Não adianta espernear

Repetir
Exaurir e reprisar
Suar até desidratar
Beber do soro do êxito
Que não se compra para aplicar

Prática
Prescreve-se para algumas vezes ao dia
Não encontra-se na farmácia mais próxima
Mas na boa-vontade legítima
Do artesão que a perfeição procura e não acha
Mas mesmo assim diariamente reivindica

Guilherme Ferreira

Sunday 6 September 2009

Sinapse


Desvalido
Desfalcado
Descuidado
Descomedido
Descriminado
Desmembrado
Despropositado
Despreocupado
Desorganizado
Desorientado
Desocupado
Descarnado
Despeitado
Desancado

Sinapse

Descartado
Desabrigado
Desnaturado
Desenraizado
Desencantado
Desconjuntado
Desacompanhado
Desacostumado
Desacreditado
Desacordado
Desanimado
Desregrado

Sinapse

Desaforado
Desenxabido
Despedaçado
Desafeiçoado
Despreparado
Desafortunado
Desavergonhado
Desagasalhado
Desvalorizado
Desprevinido
Desesperado
Desacertado
Desabalado
Desafinado

Sinapse

Desazado
Desatento
Desavisado
Desapegado
Desajuizado
Desagregado
Desapontado
Desautorizado
Desassombrado
Desembaraçado
Desinteressado
Descadeirado
Desbancado
Desligado
Desolado



Guilherme Ferreira

Saturday 29 August 2009

Frugalidade


Chris Jordan - "Cans Seurat"

Um modo de vida frugal
Hoje em dia e adiante
Não parece ser banal

De maneira diferente
O complicado se complica
O simples complexifica
E a gente, onde fica?

Enlata-se
Engarrafa-se
Encaixa-se
Embaraça-se

Todavia e contudo
Viver diferentemente
Não é tão simples assim
Exige tudo e mais nada
E um incomensurável pequeno esforço

Para Desenlatar-se
Desengarrafar-se
Desencaixar-se
Desembaraçar-se
Primeiramente e
Ultimamente

É necessário
Tudo
Mais nada
Contudo
Despertar-se

Guilherme Ferreira

Friday 21 August 2009

Momento


"There is nothing in this world that does not have a decisive moment" Henri Cartier-Bresson

Momento decisivo
Imediata a mente mente
Intuitivamente
É diferente

Um clique
Uma ficha que cai
Os planetas se alinham
E a visão eclipsada
Desanuvia

Céu claro
Estrelado ou ensolarado
Tábula rasa
Tela em branco
Com pintor a espreita

Basta a primeira pincelada
Um ponto, um rastro ou rabisco
E mais nada

Faz-se temporal com um chuvisco
Mas também uma estrondosa e bela obra-de-arte
Em um ínfimo segundo
Com uma batida do coração

Guilherme Ferreira

Sunday 16 August 2009

Flávio Rodrigues

Escrito por Maíra Watanabe Falseti

Depois de dez anos na Espanha, o guitarrista brasileiro Flávio Rodrigues lançará seu primeiro CD no Festival Internacional de Flamenco, em São José dos Campos. Ele fará turnê em seis cidades com o projeto Guitarrísmo, promovido pelo Instituto Cervantes. Flávio fala sobre sua trajetória com exclusividade ao Flamenco Brasil.

Durante a entrevista, a sensação é de conversar com um velhinho simpático e bem humorado, mas Flávio é só um jovem de 30 anos. Um menino bonito. As experiências são muitas e as histórias, inúmeras. Imagine um garoto de cinco anos tocando violão. Foi assim que Flavio Rodrigues começou seu caminho com muitos encontros, acasos, dedicação e, porque não, uma dose de sorte no universo musical. A família foi fundamental na estrutura da sua formação profissional. Todos ali, de alguma forma, estão voltados à música ou à arte, profissionalmente ou simplesmente por amor. Incentivo não lhe faltou. "O tempo passa muito rápido e a gente se dá conta de que é isso mesmo, que é preciso acreditar no que se faz. Seguir firme. Eu comecei muito cedo e graças a Deus, tive muito claro o que queria fazer, até porque meus pais sempre me alertaram nesse sentido. Tive uma boa educação, não rígida, mas meus pais nos conscientizaram sobre o que deveríamos querer com o futuro. Eu tive muito suporte. Minha mãe, chegou para mim e meus irmãos - somos em quatro - e disse: 'Olha, não quero saber de ninguém dando voltas, fazendo o que quer. Só poderão ficar em casa até os 24 anos, que dá tempo de sobra para fazerem uma faculdade e estarem no mundo trabalhando. E a faculdade que eu pago é a USP! Estou pagando colégio bom para vocês passarem direto!' Isso ficou muito forte na minha cabeça", conta Flavio.

Desde menino já tinha sonhos e vontade de ser músico. Não queria fazer faculdade, mas apenas tocar. "Vou ter que estudar demais. Daqui a dez anos, vou ter que estar tocando muito!" lembra. O artista 'caiu no mundo' cedo. Convivia com pessoas com o dobro ou o triplo da sua idade. O aprendizado foi intenso. A maturidade chegou acompanhado da cautela.

"O tempo passa muito rápido e a gente se dá conta que é preciso acreditar no que se faz"

Pedra bruta lapidada pela vida

Flavio estudou violão, piano, bateria e até chegou a cantar em um coral. Quando tinha 10 anos, o flamenco literalmente bateu em sua porta. Um amigo de sua irmã, vindo de Jerez, trazia uma guitarra flamenca, cd´s, livros e vídeos.

Esse primeiro contato foi essencial para seu universo. Despertou a sua curiosidade e a vontade de voltar a tocar violão, pois havia parado para conhecer outros caminhos. "Quando ouvi a música, tive a certeza do que queria fazer na minha vida. Até achar o Centro Flamenco Pepe de Córdoba e o Fernando de La Rua, passaram-se quatro anos. Neste intervalo estudei violão na escola Groove com Levy Miranda. Aprendi teoria, jazz, música brasileira, um pouco de violão clássico, muito violão popular e tudo isso foi importante porque me deu estrutura musical para depois encarar o flamenco, com uma base rítmica, forte como um chão firme, um alicerce bem sólido", conta.

Com apenas dezenove anos foi para a Espanha, mas Flavio já tocava profissionalmente desde os dezesseis. Tinha acabado de terminar o colegial e precisava do mais importante: a liberdade. "Foi quando realmente recebi a carta de alforria da minha família e não tive dúvida. Era só uma questão de tempo para me organizar e estudar três meses com o guitarrista Manolo Sanlúcar, Gerardo Nuñez e comprar uma guitarra". Esse era o plano. Ficou um ano.

Na volta para o Brasil encontrou amigos músicos com quem pôde trabalhar em alguns projetos, como Cisão Machado, "um baixista maravilhoso", e o "amigão de toda a vida", o violonista Yamandú Costa. "Esse ano no Brasil foi para digerir tudo que aconteceu na Espanha. Pensei: o negócio é lá mesmo. Vim mais uma vez para a Espanha em 2000, com a idéia de morar aqui. Estou há quase 10 anos sem atuar no Brasil", afirma.

"A vida aqui não é nenhum mar de rosas. Fui, aos poucos, conquistando um espacinho que ainda preciso defender todo dia. Não achei que iria chegar e já ter trabalho. Como havia morado aqui, tinha alguns contatos e portas abertas. Conhecia alguns locais e sabia um pouco como funcionava o mercado e a cultura", conta Flavio.

Foi um processo lento, porém contínuo. Seu primeiro trabalho foi na escola Amor de Dios, tocando em algumas aulas para artistas como Manuel Reyes, Manuela Carrasco, Domingo Ortega e La China, uma das pessoas mais importantes na carreira deste músico desde quando ele tinha 16 anos e presente na sua vida até hoje.

Mesmo trabalhando profissionalmente com o flamenco no Brasil, Flavio sentiu uma grande diferença ao chegar na Espanha. No Brasil não existem os recursos que a Espanha oferece. Além disso, por ser criativo, o músico brasileiro se adapta muito com aquilo que tem. "A gente se vira muito bem com as nossas adaptações e o jeitinho brasileiro para resolver certas deficiências. Acabamos fazendo e levando adiante, e ainda fazemos acontecer. Isso é muito bom e positivo. Porém, não podemos deixar de perceber que aqui na Espanha temos recursos que são fundamentais para que o flamenco seja autêntico e genuíno", compara o músico.

O outro lado da realidade

Segundo o artista, o cante é um dos problemas que acontece em todos os países, inclusive na Espanha. "Existem poucos cantaores e os poucos que existem, são muitas vezes pessoas de difícil relacionamento e com pouca formação profissional. São profissionais cantando, mas nem sempre são profissionais fora do palco. Na forma e no conteúdo. Existem vários aspectos da profissão para compreender. Ser profissional não é só subir no palco e tocar, cantar e dançar. Ser profissional envolve uma série de outros fatores. Talvez isso dificulte para que o flamenco chegue aos conservatórios. Nos Estados Unidos, por exemplo, existem universidades de Jazz. Isso na Espanha ainda não é uma realidade. Mas existem aqueles que se empenham em reconhecer o valor que o flamenco verdadeiramente tem", analisa o guitarrista.

Ele conta que existem inúmeros recursos para se profissionalizar e aperfeiçoar na Espanha, mas é necessário aprender a lidar com eles. O músico, ainda, aprofunda mais a comparação entre ser profissional no Brasil e na Espanha. Aqui, as companhias profissionais, o cante, o baile, a guitarra, e os tablados se formam por meio de adaptações de recursos, e suprindo as suas próprias necessidades. Já na Espanha a profissão é mais desenvolvida e existe um forte dinamismo. "É necessário entender e entrar nesse mundo das instituições e organizações. Entender o lado acadêmico do profissional docente, o lado do show business, aquele profissional prático, o de performance, de tablado e aprender a trabalhar em cada esquema. Cada espaço tem suas exigências. O tablado é um formato que existe há séculos na Espanha e se mantém super bem. Cada tablado tem uma linha e um esquema, é preciso conhecer as casas e como se trabalha em cada uma. Nas companhias de dança é a mesma forma. Cada uma tem a sua política e regras. O tratamento é diferente, de chefe e empregado. Tudo depende do lugar que se ocupa nessa companhia, se você é um músico, um diretor musical, um bailarino ou um cantaor.

O desafio de ser estrangeiro

"A gente tem que mostrar o dobro de serviço, para demonstrar que a gente pode fazer. Porque a gente é estrangeiro e sempre vai ser estrangeiro, é um certo peso que a gente se coloca, mas às vezes as pessoas nem olham a gente assim. Nós nos acostumamos a lidar com isso. A minha seriedade e minha dedicação também são frutos disso. A gente tem que mostrar e o esforço é muito grande. Não pode dar a menor brecha para que alguém fale que não fazemos direito. Qualquer coisa que aconteça, por mais que tenha um cargo de alta responsabilidade sempre pode sobrar pra você", desabafa.

Competência e esforço deram ao músico a direção musical da companhia de Rafael Amargo, durante seis anos. Trabalhando há três anos em um tablado, queria muito tocar numa companhia. Começou com uma substituição de um guitarrista em três espetáculos de Poeta em NY em Madri. Após temporada em Barcelona, recebeu o convite para fazer a direção musical. Era muita responsabilidade. "A sensação foi impressionante e a verdade é que tenho uma relação com Deus ou com o universo: no que eu lanço meus pensamentos, é uma questão de tempo para acontecer. Depois de alguns anos, olho para trás e penso 'puxa vida, eu tinha pedido justamente isso!'. Tenho aprendido muito na vida. A gente planta e colhe. Foram seis anos intensos e de muito trabalho. Eram, em média, 250 shows por ano, dirigindo, compondo, tocando e montando em seguida outro espetáculo, porque o Rafael Amargo não parava. Estreava um espetáculo e em seis meses já estava montando outro”, lembra.

As conquistas não pararam por aí. No ano passado, foi convidado para montar em Londres o espetáculo Zorro, ainda inédito no Brasil. Teve a difícil função de ser o “Flamenco Supervisor” do espetáculo, com músicas de Gipsy Kings e direção de Christopher Renshaw. "Foi uma experiência maluca, porque era outro universo. Um musical estilo Broadway. Montei as guitarras flamencas e morei quase dois meses em Londres", diverte-se. Logo após, foi convidado para fazer uma turnê do disco Universal Daughter da banda dinamarquesa The Savage Rose.

Saudade? Flavio sente saudades de lugares, de muitas pessoas, de comidas, de sabores, de cheiros. "Mas não se pode viver de nostalgia, é preciso viver o presente e desfrutar o lugar onde a gente está, com quem estamos naquele momento e ser feliz. Essa foi uma das conclusões que tirei quando vim morar na Espanha. Ser feliz onde estiver. Se estou no Brasil, vou curtir, se estou na Espanha, também. É a coisa mais legal que tem", define.

Um pouquinho no Brasil

Neste mês Flavio lança seu primeiro cd, Anyway

Flávio se prepara para vir em breve ao Brasil para participar de vários eventos, entre eles, o Festival Internacional de Flamenco, em São José dos Campos. Além de encontrar os amigos e trabalhar, reservou um tempo para fazer um evento beneficente. É um orfanato chamado Casa do Caminho no Embú, onde seus pais trabalham como voluntários. Ele chama alguns músicos para colaborar e arrecadar fundos para essa entidade.

Além disso, foi convidado a participar do projeto Guitarrísimo, produzido pelo Instituto Cervantes e lançará seu primeiro cd, Anyway, gravado durante dois anos. O trabalho conta com a participação de quinze artistas, como Marcelo Fuentes, Carmina José, entre outros. "Estou super animado com a ida ao Brasil porque são praticamente 10 anos sem atuar no meu país. Para mim, é o maior prazer e alegria poder voltar agora, com meu disco terminado. Vou ter a oportunidade de mostrá-lo e me apresentar", alegra-se.

Mesmo com tantas conquistas, o músico continua a sonhar. Sempre otimista, pensa na forma de melhorar o mundo onde vive. Espera que as pessoas possam ser mais honestas. Sonha em ter filhos, gravar muitos cd´s e viajar. "Quero viajar levando a música com todo o meu coração e a melhor das intenções, compartilhando o meu sentimento de alegria com as pessoas".

E finaliza: "Acho importante nunca colocar limites nos nossos objetivos. Se trabalharmos forte e com muita seriedade, os atingimos. Eles mudam quando chegamos a uma meta, e automaticamente passa a ser outra. Isso é fundamental, para não ficarmos cristalizados numa situação e na vida. Sou privilegiado, pois consegui realizar coisas que jamais imaginei que realizaria. De alguma maneira, estou colhendo os frutos de um trabalho de 10 anos de dedicação total".

Saturday 15 August 2009

Intenção


Mark Mawson - Aqueous

Basta somente uma
A primeira
A debutante
A estreante
A primeva
A infante
A novata
Pura e verdadeira

E os desejos brotam
Água fresca no seio da nascente
Rompe a terra
E a crosta que reprime

Há de se beber então
Senão, desperdiça-se
Força prima e essencial
Onde a vida se alimenta e gravita

Guilherme Ferreira

Sunday 2 August 2009

Mergulho


Underwater - Mark Mawson


Vida sem poesia
Deserto, sede e agonia
Bebo a gota de cada palavra que escassa
Na fatigada esperança de um oásis encontrar

As gotas que me restam
Já não podem saciar
Letras inodoras
Insípido fraseado
Predicado incolor

Mergulho então
Em uma busca incessante
Olho para dentro de mim
Inicialmente me afogo

Mas salvo por um fôlego
Sou resgatado
Nova palavra-salva-vidas
Deita-me em sua entranhada e colorida tessitura

De volta a superfície
Meus pulmões recheiam-se de novo ar
Vejo-me subitamente em um oceano
À deriva sem dúvida
Mas com um novo sintagma para navegar

Guilherme Ferreira

Incursão


Jackson Pollock's "One: Number 31", painted 1950.

Invadiram o território inimigo
Irrupção sem aviso prévio
Camuflada tocaia
De migo comigo mesmo

Tal investida
Que ocorreu de supetão
Uma colisão não evitou
Migo em choque comigo mesmo

Embate desarmado porém
Pois dado combate
Que ocorre na mesma pessoa
Evita ferida por auto-preservação

Migo investe comigo
Comigo retruca migo
Diário e interminável encontro
Solúvel, mas por agora sem solução

Guilherme Ferreira


Sunday 5 July 2009

Cochilo


Sunbaker - 1937 - Max Dupain - Australian 1911-1992

Repentino
Mergulho profundo
Pequena fuga, desatino
Júbilo de um cochilo

Mais cinco minutos
E dez
E quinze
E vinte
Sono eterno

Da horizontal
Desperta-se
Estira-se
Levanta-se
Aterriza-se

Da vertical
Caminha-se
Cansa-se
Rende-se
Levanta-se
Também

Sonha-se acordado
Acorda-se sonhando
Amanhece-se à noite
Anoitece-se de manhã

Vida em desenlace
Crepúsculo a esmaecer
Alvorada desabrocha-se
Ilumina, perfuma e colore
Viver é acordar
E renascer

Guilherme Ferreira

Sunday 28 June 2009

Horizonte


Centre Pompidou - Paris - 21 de junho de 2009

À vista
Uma linha ao fundo arranha o céu
Divide a terra do firmamento
O infinito do finito se delimita

Ali começa onde o outro termina
Antiga vida dá lugar a outra, nova
O olhar dali não alcança
Há então de se olhar com a imaginação
Visão nua como de criança
Com intrépida esperança

Até que se chegue a este lugar
Caminhada árdua de perseverança
E com pensamentos em cãimbra
Pára-se por um momento
Pois falta fôlego para continuar

Uma nova realidade é assim mesmo
Tão diferente e inusitada
Que é difícil de se acreditar

Guilherme Ferreira

Thursday 25 June 2009

Rue




Paris, 22 de junho de 2009

Ao seguir em frente
Ao caminho que nos leva
À esquerda ou à direita
Inevitavelmente
A escolha está à espreita

Encruzilhada então nos rodeia
Aborda, cerca e interroga
Interpela
Quem fica: roga uma nova rota
Quem foge: se atropela

Uma decisão então
Somente uma
Pavimenta nova rua
Reta ou torta, não importa

Quem porta o passo
E busca o seu próprio espaço
Faz das pedras pavimento
Das pernas com tropeço
O compasso de um recomeço

Guilherme Ferreira

Minute



Londres, 15 de junho de 2009

Em um segundo
Longo ou diminuto
A eternidade galopa
E leva a vida passageira
Em sua carruagem

Sem chofer
Sem redeas
Ou espora
Em um piscar de olhos
Aos trancos e barrancos
Perde-se tambem a estribeira

Ate quando o relogio badala
E um chamado toca como se fala:
Des
Per
Ta
Te!

O chofer entao toma posse das redeas
Calca as esporas que nunca calcou
A carruagem toma novo rumo
Novo passo, ritmo e direcao

Guilherme Ferreira

Saturday 13 June 2009

Perfume



Passou
Um rastro
Deixando uma lembrança
Em um porto
Sem seu consentimento
Ancorou-o

Imaterial como brisa
Passagem sem evidências
Crime sem dolo
Escândalo sem jornal

Memória
É o que resta
Improvável
É o seu retorno

Leve e vagamente
Toma conta este olor inusitado
Que de fato
É doce e inebriante
Mas de certa forma adicto olfato
Não é indolor

Até quando em novo rastro
Arrisca nova passagem
Desatraca neste porto
E liberta o prisioneiro

Ele então não titubeia
Perdoa a sua algoz
Em troca de uma nova pena
Que pode ser perpétua
Ata-se a este doce domínio
Uma mulher
E sua fragrância

Guilherme Ferreira

Vontade


Edvard Munch (Norwegian, 1863-1944). Kiss by the Window, 1892. Oil on canvas.
73 x 92 cm (28 3/4 x 36 1/4 in.). NG.M.02812.
The National Museum of Art, Architecture and Design, Oslo.

Com a vontade de escrever
Nasce a palavra
Sem ela
A alma se cala

Com a vontade de amar
Nasce a alteridade
Sem ela
A solidão se instala

Com a vontade de fazer
Nasce a obra
Sem ela
A vida perece

Com a vontade de ser
Nasce alguém
Sem ela
Ninguém

Com a vontade de viver
Nasce a vida
Sem ela
Não sei

Sem vontade
Não posso nem dizer
Tampouco pensar
Ou me levantar

Com ela
Tudo posso
Desde que a tenha
Ofereça-lhe moradia
Abrindo portas e janelas
Sem medo de sua partida

Guilherme Ferreira

Friday 12 June 2009

Escrever




Sobre o escrever e o viver
Eu tenho muito o que dizer
Pois nem todas as palavras foram ditas
Nem toda vida é finita

Todo escritor é um parteiro das palavras
Que não necessariamente possui diploma
Nem pomposo certificado
Pois o parteiro se faz a cada parto
A cada novo grito de força e esperança
Que dá vida a uma nova criança

Viver não é diferente
Já que vida não possui escola
Pois cada dia tem o encargo de uma lição
Dita ou não dita
Aprendemos
Querendo ou não

Vivo então para escrever
E escrevo para viver
Dou a luz a cada dia
A uma palavra ou a uma idéia
Que torna-se vida
Pelo meu ensaio e erro do cotidiano
Na escrita, na fala ou
Principalmente
Em cada ação

Guilherme Ferreira

Sunday 31 May 2009

Sentido



O homem na busca de um sentido
Pode perder a direção e a razão
Atropela-se
Pelo caminhão de cada emoção

Sem caminho
Anda em círculos
Pede por orientação
Muitas vezes sem resposta
Pois nem mesmo sabe a pergunta

Busca atalhos
E nesta carreteira
Pavimenta retalhos
Esburacada estrada provisória
Que leva a algum lugar ou a nenhum

Até que pára
Estaciona e pensa
Observa inebriados transeuntes
Que seguem mesma viagem sem destino
E chega a seguinte conclusão

O sentido verdadeiro
Não se trata de uma direção
Esquerda, direita
Para frente ou para trás

Mas parar e dar a preferência
Oferecer passagem
Para que o sentido que vem de dentro
Construa uma nova avenida
Verdadeira mas inacabada
Avenida Vocação

Guilherme Ferreira

Sunday 10 May 2009

Fermento



Para minha mãe

Para quem me ensinou a ser fermento
E a massa toda tentar levedar
Escrevo um poema  pequeno como pó
Que a alma possa alimentar
Levedura que se transformará em alimento

Este para mim é o maior ensinamento
Saber ser grão
Ou gota d'água na imensidão do mar
Guardar em mim a pureza da humildade
Sem deixar a arrogância dominar

São estes ensinamentos de mãe
Que levedam em minha alma
Crescem com o tempo
Independente de intempérie
Ou alta temperatura

O alimento ainda não chegou ao seu ponto
Espera ainda o seu momento
Com paciência
Deixando a massa crescer
Grão a grão
Até virar bolo, quitute ou pão
Manjar para a humanidade
Um dia
Quiçá

Guilherme Ferreira

Sunday 3 May 2009

Bach


Bach: Harpsichord Concerto #5 In F Minor, 
BWV 1056 - 2. Largo ( Jacques Loussier Trio)

Descobri Bach
O que antes soava como música enferrujada
Agora é música que desenferruja
Em meu pulmão respiro novo ar

Ar que oxidava
Agora sopra nova vida
Revitaliza
Permite-me ver outra dimensão

Melodia antiga
Tímida mas provocadora
Imagens inimaginadas
Porão que se ilumina
Sacando véus de minha visão

Novas cores
Novos matizes
Novas nuanças
Beleza que se descortina
Pura sublime e bela

Mundo que se imprimia
Em mim, em preto-e-branco
Agora, com Bach
Com novo brilho, luz e contraste
Pinta minha alma
Com a leveza de uma aquarela

Guilherme Ferreira

Teatro



Veja discurso de Augusto Boal sobre o dia mundial do teatro

da Folha Online - 25/03/2009 - 23h15

Leia abaixo a íntegra do discurso de Augusto Boal sobre o dia mundial do teatro, 27 de março. O pesquisador, diretor e dramaturgo foi nomeado como embaixador mundial do teatro pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura).

Leia a íntegra do discurso:

"Todas as sociedades humanas são espetaculares no seu cotidiano, e produzem espetáculos em momentos especiais. São espetaculares como forma de organização social, e produzem espetáculos como este que vocês vieram ver.

Mesmo quando inconscientes, as relações humanas são estruturadas em forma teatral: o uso do espaço, a linguagem do corpo, a escolha das palavras e a modulação das vozes, o confronto de ideias e paixões, tudo que fazemos no palco fazemos sempre em nossas vidas: nós somos teatro!

Não só casamentos e funerais são espetáculos, mas também os rituais cotidianos que, por sua familiaridade, não nos chegam à consciência. Não só pompas, mas também o café da manhã e os bons-dias, tímidos namoros e grandes conflitos passionais, uma sessão do Senado ou uma reunião diplomática --tudo é teatro.

Uma das principais funções da nossa arte é tornar conscientes esses espetáculos da vida diária onde os atores são os próprios espectadores, o palco é a plateia e a plateia, palco. Somos todos artistas: fazendo teatro, aprendemos a ver aquilo que nos salta aos olhos, mas que somos incapazes de ver tão habituados estamos apenas a olhar. O que nos é familiar torna-se invisível: fazer teatro, ao contrário, ilumina o palco da nossa vida cotidiana.

Em setembro do ano passado fomos surpreendidos por uma revelação teatral: nós, que pensávamos viver em um mundo seguro apesar das guerras, genocídios, hecatombes e torturas que aconteciam, sim, mas longe de nós em países distantes e selvagens, nós vivíamos seguros com nosso dinheiro guardado em um banco respeitável ou nas mãos de um honesto corretor da Bolsa --nós fomos informados de que esse dinheiro não existia, era virtual, feia ficção de alguns economistas que não eram ficção, nem eram seguros, nem respeitáveis. Tudo não passava de mau teatro com triste enredo, onde poucos ganhavam muito e muitos perdiam tudo. Políticos dos países ricos fecharam-se em reuniões secretas e de lá saíram com soluções mágicas. Nós, vítimas de suas decisões, continuamos espectadores sentados na última fila das galerias.

Vinte anos atrás, eu dirigi Fedra de Racine, no Rio de Janeiro. O cenário era pobre; no chão, peles de vaca; em volta, bambus. Antes de começar o espetáculo, eu dizia aos meus atores: - 'Agora acabou a ficção que fazemos no dia-a-dia. Quando cruzarem esses bambus, lá no palco, nenhum de vocês tem o direito de mentir. Teatro é a Verdade Escondida'.

Vendo o mundo além das aparências, vemos opressores e oprimidos em todas as sociedades, etnias, gêneros, classes e castas, vemos o mundo injusto e cruel. Temos a obrigação de inventar outro mundo porque sabemos que outro mundo é possível. Mas cabe a nós construí-lo com nossas mãos entrando em cena, no palco e na vida.

Assistam ao espetáculo que vai começar; depois, em suas casas com seus amigos, façam suas peças vocês mesmos e vejam o que jamais puderam ver: aquilo que salta aos olhos. Teatro não pode ser apenas um evento --é forma de vida!

Atores somos todos nós, e cidadão não é aquele que vive em sociedade: é aquele que a transforma!"