João sempre foi obcecado por dicionários. Colecionador inveterado, prateleiras inteiras de sua estante são ocupadas por exemplares de todos os tipos: Dicionários de Línguas, Dicionário de Sinônimos, Dicionário de Filosofia, Dicionário de Rimas, Dicionário de Mitos, Dicionário de Insetos Amazônicos, Dicionário de Pedras Preciosas ou coisas raras... Paro a enumeração por aqui por achá-la desnecessária, pois já deu para perceber o tamanho da obsessão de João.
Todavia, não se trata de uma obsessão infundada. Não é neurose, tampouco condenável transtorno psicológico de qualquer natureza. João não é caso de internação. Como qualquer outro ser humano deste mundo pouco humano, o nosso personagem está em busca de um significado que ainda não achou em dicionário algum. Um significado para a própria vida. Um verbete consolador. Ou em muitos verbetes: um sintagma revelador.
João uma vez, à sua mãe, perguntou:
- O que é um dicionário?
Ela prontamente respondeu:
- Meu filho, é onde você encontra os significados.
E João, previsivelmente, como qualquer criança curiosa retrucou:
- O que é significado?
Desconcertada pela imprevisibilidade da pergunta, a mãe de João tentou a tréplica:
- Meu filho, o significado é o sentido das coisas, é o que elas são. Quando você não sabe o que uma coisa é, se ficar na dúvida, é por que você não sabe o seu significado. Se não tiver ninguém para perguntar por perto, pergunte ao dicionário, e ele irá lhe responder.
A partir deste momento, João não hesitou uma só vez. Quando não sabia o significado de alguma coisa, perguntava sem nenhum pudor de importunar a ninguém. Para economizar a paciência, a mãe de João não pensou duas vezes e comprou um dicionário de presente de aniversário. O primeiro livro de significados de João. E paz e descanso à mãe de João pelos incessantes interrogatórios.
Foi daí que a coleção de João se iniciou. Não foi o único aniversário que João ganhou um dicionário. Mas, todos a partir de então. E quando João cresceu e começou a ganhar o próprio tostão, mais dicionários comprou para engrossar as fileiras de sua coleção.
João tornou-se um apaixonado pelo que as coisas significam, pelo que as coisas são. Quando em um dia qualquer, por acaso ou não, João atendeu ao telefone:
- Alô.
Um anônimo no outro lado da linha perguntou:
- Alô, quem é?
E João em ato contínuo:
- João. Com quem gostaria de falar?
- Desculpe, é um engano.
E o anônimo sem demorar desligou.
João encasquetou:
-Engano? Eu? Eu sou João!
Naquela noite, João não conseguiu pregar os olhos. Inúmeras vezes levantou incomodado com a colocação de um telefonema enganado, nada de mais, mas que levantou um questionamento que na cabeça de João se embrenhou pela primeira vez. Quem sou? Sou eu um engano, ou enganado sobre o que sou? E João não demorou. E pela busca de seu próprio significado, que nunca tinha procurado até então, a partir daquele momento, se apaixonou. No dia seguinte, uma idéia em sua cabeça, repentinamente, estalou:
- A minha coleção!
João de pronto de sua mãe se acordou:
- Quando não souber o que uma coisa é, pergunte a alguém ou pergunte ao dicionário.
João, sem hesitação, correu de súbito a sua preciosa biblioteca buscando o seu dicionário mais antigo: Aurélio, pai que João não teve.
Letra jota. Joa...Joalheiro. Joalheria. Joanete. Joaninha. Joanino. João-de-barro. João-ninguém. João-pestana. E parou por aí. E o verbete João, onde está e cadê o significado? João neste momento se embrulhou na decepção, tamanha a tristeza de não saber o seu próprio significado. Tinha, naquele momento, o que significava João-ninguém:
- [pl.: joões-ninguém] s.m. indivíduo sem importância, sem peso social ou poder econômico; borra-botas.
Entretanto, não sabia o que viria a significar João-alguém. Muito menos sabia o significado dele próprio, substantivo masculino e próprio: João.
Não passaram muitos anos, após muito suor, pesquisa, paixão e muitos tostões gastos em novos dicionários, para que João encontrasse um significado pelo menos aproximado. Seu nome vem de Yôḥānnān do hebraico que significa "Yahweh é cheio de graça". Yahweh no hebraico significa Deus. Portanto, uma das conclusões que João chegou quanto ao seu significado foi "Deus é cheio de graça". Tal conclusão não ajudou muito. Afinal João não se julgava Deus, muito menos cheio de graça. Observou também que seu nome também possui tradução para muitas línguas: John no inglês, Jean no francês, Juan no espanhol, Evan no galês, Giovanni no italiano, Jan no alemão (e também no norueguês, holandês, polonês e checo), Ivan no russo dentre outras línguas... João parou para pensar e notar que não era o único que poderia estar passando pela mesma situação. A de não saber o próprio significado e, pior, que o mesmo significado poderia ter milhares traduções.
Um banho de água fria, um nó em seus neurônios, como um nó em pingo d água. Foi por graça de Deus que João recebeu o enganado telefonema e a capciosa indagação? Mas agora esta angústia que tomava conta de si não era muito graciosa, tampouco cheia de graça. Tortura chinesa, aquela dos pingos d água intermitentes, que vagarosamente caem sobre a cabeça de tanto bater, furavam o que restava de sua tranqüilidade. Assim batia a pergunta diariamente na cabeça de João.
Quando que, se esquecendo de procurar o significado por meio da razão, João buscou uma outra alternativa. Talvez o dicionário, tampouco a sua mãe, fossem as únicas fontes de resposta para a sua velha indagação:
- Quem sou?
Deixou ao relento as prateleiras cheias de livros e de significados que não diziam nada a respeito sobre o que é ser João. Resolveu então perguntar a si mesmo e muitas vezes não encontrou uma resposta diferente de um "não" ou um "não sei".
A partir daí, João resolveu viver a vida sem um dicionário empunhado como um revólver - sempre com palavras, respostas e significados a ponto de bala. Resolveu simplesmente viver e deixar a vida criar novos significados imprevisivelmente sem definição a priori ou a posteriori. Resolveu escutar os verbetes do próprio coração e criar o seu próprio significado, por si mesmo - João. Um dicionário escrito a próprio punho, talhando a sua individuação. Um significado escrito por dia. Uma graça a cada experiência. A cada nova graça, um novo significado. Um dicionário individual e inalienável. Um dicionário cheio de graças.
Um dicionário autobiográfico, com o seu nome escrito na capa: "João". Um livro cheio de significados. Na letra J, onde seu nome faltava agora se encontrava:
- João [singular e próprio] s.m. indivíduo em construção. Humano, mas também divino. Cheio de vida e graças. Aquele que dá graças, tem gratidão. Gratidão pela vida, pelo pão e por cada dia.
Nossa....estou emocionada! Tá me faltando fôlego para descrever o que estou sentindo agora....vc é especial demais e eu me sinto muito orgulhosa de ser sua irmã!!!!
ReplyDeleteMeu Deus! Que coisa mais linda! Ver a sua evolução é um dos prazeres mais gostosos na minha vida!
Vc é a pessoa que mais comento, mais me emociona simplesmente pelo fato de ser um homem que busca ser feliz das maneiras mais inquietantes e mais desafiadoras! Vc me inspira a ser melhor!
Te amo demais!!!
Parabéns e obrigada por estar constantemente na minha vida!
Bjocas
Xaropeta.
Discordância!!! Total discordância!!!! Como ousa????
ReplyDeleteComo alienista, que o título de minha graduacão me dá, tenho que discordar!!! Eu posso até concordar com partes de sua descrição, mas meu carimbo, ele não pode concordar! Discorda!!! Discorda! E Discorda!!!! Alienistas como somos, temos o fardo da profissão em patologizar, categorizar, e veja só, tal qual o dicionário dando significado as palavras, os alienistas dão significados aos comportamentos. O CID - classificação internacional de doenças- atesta, junto com o carimbo é claro! Sem carimbo nada de credibilidade! Ah, carimbo, sonhado carimbo!!! Segue uma lista de HD -sim, iremos colocar no prontuário do paciente uma lista de hipóteses diagnósticas. Vejamos:
"F84.5 Síndrome de Asperger
Transtorno de validade nosológica incerta, caracterizado por uma alteração qualitativa das interações sociais recíprocas, semelhante à observada no autismo, com um repertório de interesses e atividades restrito, estereotipado e repetitivo. Ele se diferencia do autismo essencialmente pelo fato de que não se acompanha de um retardo ou de uma deficiência."
É claro, nosso paciente, com dados coletados até o momento, não demonstra retardo, mas por precaução vamos aplicar um teste para mensurar seu QI. Seu interesse e obssessão por dicionários aludem a tal diagnóstico!!! Falando em obssessão, podemos colocar outra HD em seu prontuário:
"F42.0 Transtorno obsessivo-compulsivo com predominância de idéias ou de ruminações obsessivas
Pode-se tratar de pensamentos, imagens mentais ou impulsos para agir, quase sempre angustiantes para o sujeito. Às vezes trata-se de hesitações intermináveis entre várias opções, que se acompanham freqüentemente de uma incapacidade de tomar decisões banais mas necessárias à vida cotidiana. Existe uma relação particularmente estreita entre as ruminações obsessivas e a depressão, e deve-se somente preferir um diagnóstico de transtorno obsessivo-compulsivo quando as ruminações surgem ou persistem na ausência de uma síndrome depressiva."
Então, temos HD (?) F84.5 e F42.0 a ser averiguada nos próximas sessões.
E como qualquer patalogizador, categorizador e normatizador, questiona-se para maiores fins, como alguém ousa se perguntar quem é! Como? Significado? Para que? Há muita metafísica...
"Tranquem a cidade toda!"
Assinado: colega do Dr. Simão
Acho que eu conheço esse João aí!
ReplyDeleteBari!
ReplyDeleteQue coincidência! Tb acho este João tão familiar...
Bjoss
Ola Colega do Dr. Simao,
ReplyDeleteonde está a chave da tranca? Alias onde fica a porta? Estou a procura, avise-me se as encontrar!
Grande abraco!
Guilherme