Saturday, 23 August 2008

Luz



"There´s only One Sun" - Wong Kar Wai



"Há somente um sol, mas que viaja o mundo todo dia. Ele é todo meu e eu nunca irei me desfazer dele!" Marina Tsvetaeva


Um sol para todos
Solamente, vezes acompanhado por outras estrelas
Viaja o mundo diariamente

Um dia por vez
De este a oeste
Acima de nossas cabeças
A luz se faz presente

Apaga-se à noite, temporariamente

Outra luz, todavia
Encontra-se apagada de nossa memória
Não definitivamente
Pois se acende dentro de nós
Inesperadamente
Toda vez que a ilusão se põe a oeste
E permitimos que a vida nasça a leste

A cegueira nos faz noturnos

De espreita, à nossa espera
A manhã se faz latente
Mas a teimosia nos entardece

Pergunto-me então:
Quando amanhecerei?

Para esta inquirição
Com minha cegueira
Ainda não encontrei solução

Mas faço uso de um jargão
Há sempre luz no fim do túnel
Para aquele que acorda todo dia
Voluntariamente fazendo o seu próprio amanhecer

Fazer do entardecer um mero detalhe
Da noite, a temporária ausência de luz
Pois para aquele que a possui dentro de si
A escuridão é uma exterioridade passageira

Pede carona na estrada e nos seduz
Mas fica para trás se o motorista acende o farol
Sem dormir no volante
Atento e diligente, seguindo em frente

Guilherme Ferreira

Sunday, 10 August 2008

Cor



Uma página em branco
Sentar-se em um banco
Como o pensador de Rodin
Deixar a estória da vida projetar
Passar pela mente como em um ecrã

Curiosíssimo
Pois vejo as memórias em preto-e-branco
Não multi-coloridas no momento que as vivi
A mente engana, monocromática que é
Apaga as cores, as deixam para milissegundos de déjà-vu

O passado então misteriosamente torna-se bicolor, logo após ser presente
O presente sempre é colorido até o ponto onde torna-se passado
A vida, portanto, é policromática quando vivida no agora
O presente seqüestrado pelo passado, quando desperdiçado

Este segundo é uma paleta de cores que não voltam mais
Cabe ao pincel das nossas ações libertarem estas cores
Que são demasiadamente encarceradas pelos medos
E a espontaneidade é a única capaz de nos render da prudência
Nossa algoz e carcereira que nos pinta em tons cinzentos
Cilício de pinceladas em seqüencia

Vale então deixar a mente que nos engana de lado
E pintar com o coração
Libertador
Que dá cor
Cora o viver
Com as cores que só o sentimento pode oferecer

Sentir que só é possível neste segundo
Este momento
Agora
Na ponta da língua
Quando todos os poros estão abertos
Os olhos arregalados
O nariz à espreita
E os ouvidos escancarados

Guilherme Ferreira

Tuesday, 5 August 2008

Bolero




Esta é uma daquelas músicas que posso escutar consecutivamente mais de uma vez sem cansar. Cada vez que a escuto, sinto algo diferente. E dado ao poder de todo bolero, me transporto para um outro lugar - sempre novo.

Não é a toa que muitos compositores possuem a própria versão: Ravel, Chopin e também Vicente Amigo que podemos assistir neste vídeo. Daí me pergunto o porquê, podendo chegar a conclusão que o bolero possui exatamente esta magia de sequestrar a mente por alguns instantes e nos levar para territórios desconhecidos. Sendo esta magia uma das virtudes da música, daí se dá a escolha destes compositores por este ritmo lento e hipnotizador. Este bolero (de Vicente), em particular, foi dedicado a um dos filhos de Vicente Amigo, por seu nascimento. E como por coincidência, ou talvez intencionalmente, ele me transporta para muitos lugarejos diferentes que fazem parte de uma mesma vizinhança que posso classificar como Paternidade.

Paternidade, 10 de Agosto de 2008

Lugarejo onde mora a ternura
Um outro (lugarejo) da atenção a distância, mas não distante
E assim por diante...
Autoridade que educa, mas não machuca
Colo que protege e aquece, chama que não queima
Palavra assertiva que acerta direto o coração
Olhar que cala sem falar nem gritar
Conselho atestado pela experiência

Ainda estou um pouquinho longe desta vizinhança
Um dia, não muito longe, com certeza
Irei a paternidade habitar
E talvez brote a inspiração para um bolero
Como este, de Vicente
Para a alegria de ser pai registrar
Sentimento que faz do homem mais homem
Mais decente
Pois amplia a capacidade de amar
E de admitir ser amado

Guilherme Ferreira

Sunday, 3 August 2008

Simplicidade

Gosto muito de música. A língua francesa é como música para os meus ouvidos. Não por acaso, utlimamente, tenho procurado e assistido a tantos filmes franceses. O último, "Ensemble, c'est tout" de Claude Berri me inspirou a pensar sobre a Simplicidade. A estória não tem nada demais, nem super-produção - e aí reside a sua beleza e sua capacidade de tocar a alma da audiência. Retrata a vida de quatro indivíduos isolados que passam a criar conexões entre si, sem passes de mágica e pirotecnia hollywoodiana, e aprendem nas situações mais simples a arte humana da convivência.

Uma reflexão importante a se fazer, ao se constatar que na verdade vivemos em bando - diariamente esbarrando ombros sem perceber que temos em comum a capacidade de conviver e de amar. Todavia, a Simplicidade é um tema muito pretensioso que eu em meu engatinhar não ousarei intentar a escrita.

Por isso, a deixo para um pensador que gosto muito: Rubem Alves. Ele fala sobre Simplicidade e Sabedoria, como sempre, de uma maneira muito simples e palatável. Vejam abaixo, e desde já me classifico no grupo daqueles pássaros, que segundo o autor, voam pela manhã da juventude...Ai ai ai!


Sobre Simplicidade e Sabedoria

Rubem Alves

Pediram-me que escrevesse sobre simplicidade e sabedoria. Aceitei alegremente o convite sabendo que, para que tal pedido me tivesse sido feito, era necessário que eu fosse velho.

Os jovens e os adultos pouco sabem sobre o sentido da simplicidade. Os jovens são aves que voam pela manhã: seus vôos são flechas em todas as direções. Seus olhos estão fascinados por 10.000 coisas. Querem todas, mas nenhuma lhes dá descanso. Estão sempre prontos a de novo voar. Seu mundo é o mundo da multiplicidade. Eles a amam porque, nas suas cabeças, a multiplicidade é um espaço de liberdade. Com os adultos acontece o contrário. Para eles a multiplicidade é um feitiço que os aprisionou, uma arapuca na qual caíram. Eles a odeiam, mas não sabem como se libertar. Se, para os jovens, a multiplicidade tem o nome de liberdade, para os adultos a multiplicidade tem o nome de dever. Os adultos são pássaros presos nas gaiolas do dever. A cada manhã 10.000 coisas os aguardam com as suas ordens (para isso existem as agendas, lugar onde as 10.000 coisas escrevem as suas ordens!). Se não forem obedecidas haverá punições.

No crepúsculo, quando a noite se aproxima, o vôo dos pássaros fica diferente. Em nada se parece com o seu vôo pela manhã. Já observaram o vôo das pombas ao fim do dia? Elas voam numa única direção. Voltam para casa, ninho. As aves, ao crepúsculo, são simples. Simplicidade é isso: quando o coração busca uma coisa só.

Jesus contava parábolas sobre a simplicidade. Falou sobre um homem que possuía muitas jóias, sem que nenhuma delas o fizesse feliz. Um dia, entretanto, descobriu uma jóia, única, maravilhosa, pela qual se apaixonou. Fez então a troca que lhe trouxe alegria: vendeu as muitas e comprou a única.

Na multiplicidade nos perdemos: ignoramos o nosso desejo. Movemo-nos fascinados pela sedução das 10.000 coisas. Acontece que, como diz o segundo poema do Tao-Te-Ching, “as 10.000 coisas aparecem e desaparecem sem cessar.“ O caminho da multiplicidade é um caminho sem descanso. Cada ponto de chegada é um ponto de partida. Cada reencontro é uma despedida. É um caminho onde não existe casa ou ninho. A última das tentações com que o Diabo tentou o Filho de Deus foi a tentação da multiplicidade: “Levou-o ainda o Diabo a um monte muito alto, mostrou-lhe todos os reinos do mundo e a sua glória e lhe disse: ‘Tudo isso te darei se prostrado me adorares.’“ Mas o que a multiplicidade faz é estilhaçar o coração. O coração que persegue o “muitos“ é um coração fragmentado, sem descanso. Palavras de Jesus: “De que vale ganhar o mundo inteiro e arruinar a vida?“ (Mateus 16.26).

O caminho da ciência e dos saberes é o caminho da multiplicidade. Adverte o escritor sagrado: “Não há limite para fazer livros, e o muito estudar é enfado da carne“ (Eclesiastes 12.12). Não há fim para as coisas que podem ser conhecidas e sabidas. O mundo dos saberes é um mundo de somas sem fim. É um caminho sem descanso para a alma. Não há saber diante do qual o coração possa dizer: “Cheguei, finalmente, ao lar“. Saberes não são lar. São, na melhor das hipóteses, tijolos para se construir uma casa. Mas os tijolos, eles mesmos, nada sabem sobre a casa. Os tijolos pertencem à multiplicidade. A casa pertence à simplicidade: uma única coisa.

Diz o Tao-Te-Ching: “Na busca do conhecimento a cada dia se soma uma coisa. Na busca da sabedoria a cada dia se diminui uma coisa.“

Diz T. S. Eliot: “Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento?“

Diz Manoel de Barros: “Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar. Sábio é o que adivinha.“

Sabedoria é a arte de degustar. Sobre a sabedoria Nietzsche diz o seguinte: “A palavra grega que designa o sábio se prende, etimologicamente, a sapio, eu saboreio, sapiens, o degustador, sisyphus, o homem do gosto mais apurado. “A sabedoria é, assim, a arte de degustar, distinguir, discernir. O homem do saberes, diante da multiplicidade, “precipita-se sobre tudo o que é possível saber, na cega avidez de querer conhecer a qualquer preço.“ Mas o sábio está à procura das “coisas dignas de serem conhecidas“. Imagine um bufê: sobre a mesa enorme da multiplicidade, uma infinidade de pratos. O homem dos saberes, fascinado pelos pratos, se atira sobre eles: quer comer tudo. O sábio, ao contrário, para e pergunta ao seu corpo: “De toda essa multiplicidade, qual é o prato que vai lhe dar prazer e alegria?“ E assim, depois de meditar, escolhe um...

A sabedoria é a arte de reconhecer e degustar a alegria. Nascemos para a alegria. Não só nós. Diz Bachelard que o universo inteiro tem um destino de felicidade.

O Vinícius escreveu um lindo poema com o título de “Resta...“ Já velho, tendo andado pelo mundo da multiplicidade, ele olha para trás e vê o que restou: o que valeu a pena. “Resta esse coração queimando como um círio numa catedral em ruínas...“ “Resta essa capacidade de ternura...“ “Resta esse antigo respeito pela noite...“ “Resta essa vontade de chorar diante da beleza...“. Vinícius vai, assim, contando as vivências que lhe deram alegria. Foram elas que restaram.

As coisas que restam sobrevivem num lugar da alma que se chama saudade. A saudade é o bolso onde a alma guarda aquilo que ela provou e aprovou. Aprovadas foram as experiências que deram alegria. O que valeu a pena está destinado à eternidade. A saudade é o rosto da eternidade refletido no rio do tempo. É para isso que necessitamos dos deuses, para que o rio do tempo seja circular: “Lança o teu pão sobre as águas porque depois de muitos dias o encontrarás...“ Oramos para que aquilo que se perdeu no passado nos seja devolvido no futuro. Acho que Deus não se incomodaria se nós o chamássemos de Eterno Retorno: pois é só isso que pedimos dele, que as coisas da saudade retornem.

Ando pelas cavernas da minha memória. Há muitas coisas maravilhosas: cenários, lugares, alguns paradisíacos, outros estranhos e curiosos, viagens, eventos que marcaram o tempo da minha vida, encontros com pessoas notáveis. Mas essas memórias, a despeito do seu tamanho, não me fazem nada. Não sinto vontade de chorar. Não sinto vontade de voltar.

Aí eu consulto o meu bolso da saudade. Lá se encontram pedaços do meu corpo, alegrias. Observo atentamente, e nada encontro que tenha brilho no mundo da multiplicidade. São coisas pequenas, que nem foram notadas por outras pessoas: cenas, quadros: um filho menino empinando uma pipa na praia; noite de insônia e medo num quarto escuro, e do meio da escuridão a voz de um filho que diz: “Papai, eu gosto muito de você!“; filha brincando com uma cachorrinha que já morreu (chorei muito por causa dela, a Flora); menino andando à cavalo, antes do nascer do sol, em meio ao campo perfumado de capim gordura; um velho, fumando cachimbo, contemplando a chuva que cai sobre as plantas e dizendo: “Veja como estão agradecidas!“ Amigos. Memórias de poemas, de estórias, de músicas.

Diz Guimarães Rosa que “felicidade só em raros momentos de distração...“ Certo. Ela vem quando não se espera, em lugares que não se imagina. Dito por Jesus: “É como o vento: sopra onde quer, não sabes donde vem nem para onde vai...“ Sabedoria é a arte de provar e degustar a alegria, quando ela vem. Mas só dominam essa arte aqueles que têm a graça da simplicidade. Porque a alegria só mora nas coisas simples. (Concerto para corpo e alma, pg. 09.)