Sunday 29 November 2009

Regência


Cornell Capa, [Igor Stravinsky, Venice], 1951

Conduzir
E deixar ser conduzido
Dirigir
E deixar ser dirigido

Consumir
E deixar ser consumido
Digerir
E deixar ser digerido

Compor
E deixar ser composto
Interpretar
E deixar ser interpretado

Reger
E deixar ser regido
Pelos astros,
Pela batuta ou
Pelo compasso

É uma arte
Seja de composição
De interpretação
Ou simples expressão

E para ler a pauta da vida
Crescendo
Diminuendo
Staccato
Marcato ou
Legato

Não basta ser virtuose
Pois para preencher o vazio
Entre a partitura e a orquestra
Além da esquerda que voa livre sem pio
A batuta há de também aterrissar-se pela destra

Ultimamente
Exige maestria
Ao unir-se a esta massa orquestral
Sem perder o tempo
A articulação
A humildade
E a própria música

Guilherme Ferreira

Saturday 28 November 2009

Escutar


Édouard Boubat - Rémi holding a shell,
Paris, France, 1955

O som que vem de fora
Ora vezes dentro reverbera
Quando ouvidos bem abertos
Portam-se em compasso de espera

O som que vem de dentro
Ressoa para fora
Quando a boca não deplora
Os contíguos sentimentos

A palavra
O tom
A melodia
O som

Escutar
Ouvir
Silenciar
Uma concha a parir

Casco côncavo e calcário
Que sem pronunciar alarido
Dá luz ao silêncio e seu leve sonido
Calando a Vênus parideira
E o sofrimento do calvário

Estes decibéis sutis
Clamam uma privação
Do falatório
Da gritaria
Do barulho
Do ruído

Ensurdecedora
A dissonância desta cacofonia
Falsa ressonância
Ecoa desarmonia

Mas nas pregas
Da nossa própria abóboda
Encontra-se uma nova acústica
Dos nossos próprios sentimentos

A imaginação viaja em ondas então
Quase silenciosa escuta-se a sinfonia
Que bate e rebate nesta audição
Da melodia de si mesmo

Guilherme Ferreira

Sunday 22 November 2009

Segunda-feira



Já tem fama de ser a segunda
Pois a primeira não se ouviu falar
A terça a acompanha
Para não deixá-la solitária
Até o fim de semana

Antes dela o domingo à noite
Que utilidade não tem
Pois pior que ela própria
Só imaginar que daqui a pouco ela vem

Seja chuvosa
Costumeiramente
Ou até ensolarada
Raramente
Ela não tem jeito
Nasceu bastarda
Pelo menos no português
No galego, no tétum
E mirandês

Como chuva de verão
Deixe ela passar
Já estou aprendendo
Esta é uma solução

A água cai
A enxurrada varre
As nuvens fogem
O sol pede passagem

Novo ciclo da vida se inicia
Não reclamo mais
Nem dou bobeira
Aconteça
Inevitável
Segunda-feira

Guilherme Ferreira

Sunday 8 November 2009

Segurança


Lego recreation of Henri Cartier-Bresson's 1938 photograph
"By the Marne River" in Lego by Mike Balakov

Migalhas como provento
Pálidas e anoréxicas honrarias
De efêmero sucesso
Cárcere com portas pseudo-abertas
Com fiança como insaciável desalento

Qualquer semelhança não é mera coincidência
Ora, delito de difícil auto-absolvição
Grilhão mental que é
Tortura o sujeito
Sem deixar evidência

Pergunta-se o porquê de tanta abastança
E da escravidão, a sua verosimilhança
Tanta honraria esvaziada
Transforma-se em penitenciária
Fechada a chaves por sua própria ganância

Pergunta-se o porquê da penitência
E para quê tanta intemperança
Afinal este conforto não se justifica
Nem deixar a própria vida como garantia
A alma penhorada
E o corpo como cheque caução

Pergunta-se o porquê de tanta certeza
E para quê tanta auto-confiança
Afinal tudo isso sem legítima esperança
Trata-se de afirmação convicta mas sem juízo
Sentença sem sujeito
Salto no vazio sem precaução

Pergunta-se se trata-se de aventurança
Ou investida messiânica de qualquer natureza
Se olhares os honorários
E o verdadeiro intento e desejo
Concluirás que não se trata de um santo vigário
Mas um falso profeta
Oco e perdido em sua própria procissão

Pergunta-se o porquê de tanta poupança
Tanta bonança acumulada às traças
Consumida em interminável comilança
Com bebida que não sacia a sede
Nem alimento que sustenta o esqueleto
Esta equação é cheia de contraditórias incógnitas
Longe de uma firme e incontestável resolução

Coloca-se tudo na balança
Em busca de estabilidade
Equilíbrio
Infalibilidade

Busca-se absolvição
De tal regime destemido
Fugindo deste cubículo
Cela que macela e incha ego
Como carcereira de profissão

Acha-se a saída
Perguntando-se a criança embutida
Que com sua simplicidade e temperança
Retruca sem hesitação:
Só tropeça quem dança
Só se caminha sem equilíbrio

A tão almejada segureza
É sob risco conquistada
É nadada na contra-corrente
Não é livre de perigos
Nem afastada de danos de todo mal

Governança na incerteza
Mudança sem caminhão
Perseverança ilesa
Coragem sem afoiteza

Neurose sem separação
Reação sem vingança
Amar em vizinhança
Sem temer que tudo seja em vão

Arrependimento sem medicança
Andança com animação
Dança com contradança
Êxito sem cobrança

Assim não se pode comprá-la
Tampouco emprestá-la
Vendê-la
Leiloá-la

Pois a verdadeira
Não se tem
Se sente

Trança-se
Em aliança consigo mesmo
Quando se avança
Em segurança

Guilherme Ferreira